Estava voltando para casa no ônibus e vi uma cena no mínimo inusitada. No meio do percusso sobe um jovem, aparentando seus 25 anos, vestindo roupas bastante humildes e com uma aparência triste porém bastante lúcida. O mesmo paga sua passagem, ultrapassa a catraca e diz:
- Boa Noite Senhores!
Poucos responderam. O jovem novamente diz com um tom de voz mais alto:
- Boa Noite Senhores!
O número de pessoas a responder aumentou significativamente (inclusive de minha parte que estava distraído da primeira vez).
- Quero perguntar a vocês uma coisa. Me digam com toda a sinceridade. As aparências podem dizer o verdadeiro caráter das pessoas?
As pessoas ficaram sem jeito pra responder, como se isso significasse a confissão de seus preconceitos. Ao ouvir uma pergunta tão original para o momento fiquei reparando com atenção o que aquele rapaz queria. Seria ele mais uma vítima de um sistema de exclusão social? Um membro de uma família com bastante dificuldades em se sustentar que estava tentando a atenção para pedir ajuda financeira para comprar comida? Um religioso que tinha como objetivo dar o seu testemunho de superação graças a fé? Todos ficaram esperando para ver o que aquele homem iria dizer. O mesmo com muita naturalidade e sinceridade continuou:
- Ao me verem mal vestido que lhes veio na cabeça? Provavelmente que eu era mais um viciado em drogas ou vagabundo que inventa uma história comovente sobre sua família para faturar uma grana não é? Pois bem. Quem achou que eu sou um dependente químico acertou em cheio (todos olharam abismados). Estou aqui porque sou dependente de uma droga que eu não quero citar o nome por estar na presença de crianças mas que vem devastando milhares de vidas em nosso país. Vocês sabem qual é não é mesmo?
Neste momento confesso que todos já estavam alarmados com a maneira que aquela abordagem estava sendo feita. O rapaz tinha grande facilidade em oratória, utilizando hora palavras rebuscadas e com uma gentileza incrível. E assim ele continua:
- Não vou fazer como muitos, que dizem que tem os pais doentes, afinal minha família não tem culpa de meus erros e não merecem que eu invente desgraças a seu respeito só pra conseguir dinheiro. ou que é pai de família e deixou mulher e filhos em casa a espera de comida. Também não direi que estou aqui para pedir dinheiro porque preciso comprar comida, nem que sou algum coitadinho, pois não foi a droga que me procurou, e sim o contrário. Também não vou lhes pedir algo em nome de Deus. "Ela" (era assim que ele se referia as vezes a droga) me levou quase tudo. Do que eu era só restou a minha sinceridade e meu senso de honestidade que me faz estar aqui neste coletivo falando isso a vocês e pedindo, ao invés de estar roubando ou mentindo para sustentar meu vício.
Fiquei extremamente impressionado. Nunca tinha visto alguém pedir desta maneira dinheiro para comprar drogas, aliás não só eu, todos pareciam confusos ou incrédulos no que haviam ouvido. Este jovem, repito, com grande habilidade de oratória e muita educação, acabara de pedir aos passageiros ali presentes uma ajuda para que o mesmo pudesse sustentar sua dependência.
Na hora de "passar o chapéu" muitas pessoas deram dinheiro ao rapaz, inclusive elogiando sua coragem e sinceridade, maneira que, para grande maioria era digna de elogios. Ao invés disso eu preferi refletir: Quantos jovens como esse estão as margens da sociedade destruindo suas vidas na dependência de drogas como o crack? Quantos poderiam ter um futuro brilhante se não fossem vitimados pelas mazelas sociais e empurrados ao submundo das drogas? Quantas vidas eu, meus familiares, a sociedade em geral e o poder público poderiam ter salvado ao longo dessa epidemia trágica?
É preciso pensar em repostas para estas perguntas antes que seja tarde demais. Precisamos de um estado que não faça um paliativo através da repressão policial ao viciado, como se ele fosse o maior culpado, enquanto não se tem uma política efetiva e forte de enfrentamento ao narcotráfico. Necessitamos de um investimento alto em educação, qualificação profissional e emprego, para que os jovens possam ter uma nova perspectiva de vida através da educação e do trabalho. É preciso enfrentar o problema do crack como caso de saúde pública, dando o tratamento adequado e gratuito ao dependente.
É difícil se livrar do vício, em especial do crack, entretanto mais difícil ainda é desenvolver um país que não consegue dar condições de futuro para a nossa juventude, construindo hoje a sociedade e o país do amanhã.